Austral Comunicación
ISSN(e) 2313-9137
Volumen XI, número 2 - Diciembre de 2022
Flávia Lopes
Universidade do Porto
flavia.lopes.sn@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2667-4364
Fecha de finalización: 1 de agosto de 2022.
Recibido: 18 de agosto de 2022.
Aceptado: 11 de noviembre de 2022.
DOI: https://doi.org/10.26422/aucom.2022.1102.lop
Resumo O termo “pós-verdade” ganhou notoriedade nos últimos anos em um contexto
tecnológico conflituoso, com o alastramento de notícias falsas e distorções da
verdade em conteúdos na internet. O conceito ganhou notoriedade em 2016, quando
recebeu um espaço no dicionário da Oxford dedicado à nomenclatura, que se
referia à “pós-verdade” como o ato de relacionar ou denotar circunstâncias nas
quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do
que apelos à emoção e crença pessoal. No entanto, o fenómeno não é nada novo. O
que nos levou a uma problemática mais complexa sobre a pós-verdade. Este artigo
faz uma revisão bibliográfica sobre os conceitos de Complexidade de Edgar Morin
e os princípios do paradigma tecnológico de Castells e traça um diálogo das
duas perspectivas para a partir daí proporcionar um debate sobre a
“pós-verdade” sob uma ótica epistemológica do campo da Infocomunicação. Ao
longo deste artigo ensaístico, refletimos como este conceito da “pós-verdade”
mostra-se inaplicável para a ciência e, consequentemente, para o contexto das
pesquisas em Infocomunicação. Palavras-chave: informacionalismo, Infocomunicação, pós-verdade, fake
news. Resumen El término “posverdad” ha ganado
notoriedad en los últimos años en un contexto tecnológico conflictivo, con la
difusión de noticias falsas y distorsiones de la verdad en el contenido de
Internet. El concepto ganó notoriedad en 2016, cuando recibió un espacio en el
diccionario de Oxford dedicado a la nomenclatura, que se refería a la
“posverdad” como el acto de relatar o denotar circunstancias en las que los
hechos objetivos son menos influyentes para forzar la opinión pública que las
apelaciones a la emoción y la creencia personal. Sin embargo, el fenómeno no es
nada nuevo. Lo que nos llevó a un problema más complejo sobre la posverdad.
Este artículo hace una revisión bibliográfica sobre los conceptos de
Complejidad de Edgar Morin y los principios del paradigma tecnológico de
Castells, trazando un diálogo desde las dos perspectivas para proporcionar un
debate sobre la “posverdad” desde una perspectiva epistemológica del campo de
la Infocomunicación. A lo largo de este artículo ensayístico, reflexionamos sobre
cómo este concepto de “posverdad” es inaplicable a la ciencia y, en
consecuencia, al contexto de la investigación en Infocomunicación. Palabras clave: informacionalismo, infocomunicación,
posverdad, fake news. Post-truth: a critique from the
perspective of infocommunication Abstract The term “post-truth” has gained traction in the past few years, thanks
to a contentious technological context, the spread of fake news, and the
distortion of truth on the internet. The concept gained notoriety in 2016, when
Oxford Dictionaries chose it as their word of the year, referring to
“post-truth” as an adjective “relating to or denoting circumstances in which
objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to
emotion and personal belief.” However, this phenomenon is nothing new, a fact
that led us to a more complex problem with “post-truth.” This article carries
out a bibliographic revision of Edgar Morin’s concept of complexity and the
principles of the technological paradigm outlined by Castells. We open a
dialogue between these two perspectives in order to debate about “post-truth”
from the epistemological perspective of infocommunication. Throughout this
essay, we reflect on how “post-truth” cannot be applied to science and, thus,
to investigations in the field of infocommunication. Keywords: infocommunication,
informationalism, post-truth, fake news.
Posverdad: una crítica desde la perspectiva de la Infocomunicación
O alastramento de informações falaciosas, o demasiado compartilhamento de notícias tendenciosas nas redes sociais e os discursos irresponsáveis de usuários da internet sem se preocuparem com o conteúdo que divulgam corroboraram com um ambiente tóxico na esfera digital. As redes, um espaço público onde conectam-se milhares de pessoas da sociedade, virou um terreno minado para quem não sabe filtrar as informações. Esse cenário abriu margens para novas ressignificações que não passam mais do mesmo: notícias falsas viraram Fake News e as mentiras e manipulações informacionais ganharam nova roupagem, e, quando mais elaboradas e de forma hostil aparecem nos discursos sociais, ganhou um apelido que chamou atenção: a “pós-verdade”, ou post-truth (em inglês), conceito o qual utilizaremos entre aspas por não concordarmos com a denominação.
O conceito ganhou notoriedade em 2016, quando recebeu um espaço dicionário da Oxford dedicado à nomenclatura, que se referia à “pós-verdade” como o ato de relacionar ou denotar circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal. (Word of the year, 2016). O cenário da criação do verbete foi a eleição do então presidente norte-americano, Donald Trump e o Breixit (saída do Reino Unido da União Europeia), dois eventos que se destacaram por publicações de notícias falaciosas nas redes sociais e nos pronunciamentos dos líderes políticos. Além disso, as duas campanhas têm em comum o envolvimento com a Cambridge Analytica, uma agência de comunicação estratégica que se tornou alvo de questionamentos por conta dos métodos de manipulação informacional aplicados, utilizando dados privados de usuários de várias redes sociais, como o Facebook, por exemplo (Heawood, 2018).
No entanto, um verbete no dicionário e algumas publicações tendo a palavra “pós-verdade” como enfoque central não legitima o espaço da nomenclatura no hall da ciência. Ao longo deste artigo ensaístico traçamos um debate sobre o fenômeno da “pós-verdade” como um produto conflituoso da sociedade em rede, e que ganhou notoriedade inclusive no campo filosófico como se fosse uma espécie de novo fenômeno social (Brahms, 2020), entretanto o nome não sugere nada de novo. Nossa crítica é subsidiada por uma referência bibliográfica pautada nos estudos Infocomunicacionais, mais precisamente no paradigma da complexidade de Edgar Morin (2005) e no paradigma tecnológico de Manuel Castells (1999).
Morin, ao conceituar a complexidade como uma equilibrada forma de enxergar os fenômenos da ciência e das variadas atividades humanas, nos apresenta um campo dialógico de análise, em que podemos compreender as mais diversas perspectivas de um assunto, abarcando suas particularidades múltiplas sem mutilar os fenômenos: nem recorrendo a um relativismo que induz ao erro, nem a um reducionismo que nos corta a apreciação da totalidade das coisas, atitudes as quais desembocam em interpretações de uma inteligência cega, como elucida na obra Introdução ao pensamento complexo (Morin, 2005).
Já Castells nos apresenta uma compreensão das novas formatações sociais advindas com o avanço da tecnologia. Seu paradigma tecnológico nos possibilita compreender que a sociedade agora se conecta em redes e que o capitalismo se reformulou com as novas práticas de comunicação e formas de compartilhamento de informações. Pela sua perspectiva, tratada no livro A Sociedade em Rede (1999), conseguimos entender fenômenos sociais que são típicos produtos da sociedade em rede.
Quando os fenômenos da sociedade atual agem em discordância com esses dois paradigmas, entrando em confronto com os princípios da complexidade mesmo que nas novas formatações da sociedade em rede, ocorrem fissuras e problemáticas sociais que requerem um olhar crítico. É o caso da “pós-verdade”. Nesse sentindo, enxergando esse fenômeno a partir da ótica da Infocomunicação, tendo os paradigmas da complexidade de Morin (2005) e os paradigmas tecnológicos estabelecidos por Castells (1999), podemos perceber o fenômeno da pós-verdade como um fenômeno pós-moderno, em que os dados informacionais são adicionados à estrutura complexa da sociedade, numa distorção intencional dos fatos.
A partir da segunda metade dos anos 80 até os dias atuais, a sociedade assistiu, e continua a assistir, a um crescimento irrefreável das novas tecnologias da informação. Com as novidades, surgiram também inevitáveis mudanças nas formatações da comunicação social, o que despertou pesquisadores da área das ciências sociais a ampliarem os horizontes para melhor perceberem os fenômenos.
O esforço da compreensão das novas formatações de comunicação e informação levou estudiosos da área a desembocarem em um novo campo de estudos: a Infocomunicação. Neste campo é possível compreender fenômenos por uma perspectiva ampla e não linear, que dialoga com várias outras áreas científicas. Desse modo, a Infocomunicação pode ser compreendida como a união de dois campos de pesquisas ligados de modo interdisciplinar e transdisciplinar com um objetivo em comum: compreender de forma mais complexa os fenômenos que abrangem as novas formas de comunicação e informação da sociedade atual, principalmente no espaço da sociedade em rede, mediado pelas plataformas digitais (Passarelli, Silva, e Ramos, 2014).
O campo de estudo, apesar de agora nos parecer uma área epistemológica óbvia para compreensão de determinados fenômenos da atualidade, tardou a nascer, mas veio à tona em um momento propício para a compreensão das mudanças sociais. As iniciativas para o surgimento dessa nova linha de pesquisa e campo epistemológico transdisciplinar partiu de instituições provenientes de Portugal e Brasil (mais precisamente na Universidade do Porto, Universidade de Aveiro e na Universidade de São Paulo-USP), em um esforço conjunto de compreender as atuais interações sociais mediadas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação.
Os pesquisadores, ao se debruçarem sobre diversos objetos de estudo, perceberam que a ciência da Informação e a ciência da Comunicação, sozinhas, ainda não conseguiam abarcar a totalidade fenomenológica das novas formas comunicacionais e informacionais da sociedade.
Somente unindo os dois campos é que se é possível uma compreensão complexa (aqui trazendo o sentido de complexidade por Morin, o qual abordamos no tópico a seguir) para podermos investigar com mais profundidade cada elemento de pesquisa que abrange essas áreas. Essa união interdisciplinar e transdisciplinar é permitida pela abrangência epistemológica dos campos da Informação e da Comunicação. Por isso, seguindo a linha de raciocínio de Pombo (2005), que entende que a interdisciplinaridade, que anda em conjunto com a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade e a pluridisciplinaridade, é uma das fases da integração de saberes, compreendemos que o campo da Infocomunicação é um novo campo de saber que une processos, análises e métodos tanto da Informação como da Comunicação[1].
A Infocomunicação é um campo de estudo que se dedica à proposição de novos conceitos para novos fenômenos e dedica-se a:
Desvendar, interpretar e compreender o conjunto desses fenômenos do universo da informação e da comunicação no mundo digital, no momento mesmo em que surgem, se estabelecem e se desenvolvem, é o desafio que se impõe hoje e ao qual se dedicam exaustivamente as duas instituições de pesquisa, das quais provêm os autores [...]. (Passareli, Silva e Ramos, 2014, p. 16).
O campo epistemológico da Infocomunicação é por sua natureza interdisciplinar porque é dialógico em relação a outras disciplinas, mas é também transdisciplinar, pois sua característica complexa permite não apenas um diálogo, mas também uma capacidade de transformação epistemológica. As pesquisas em Infocomunicação ultrapassam as barreiras de apenas manter relação dialética com outros campos de estudo, suportando também novas conceituações e interpretações, algo que as mudanças no campo da comunicação e da informação demandam. É assim, um campo transdisciplinar, onde os variados tipos de conhecimento não apenas convivem entre si, mas também se transfiguram dando lugar a novos espaços de conhecimento.
Por ser transdisciplinar e interdisciplinar, o campo da Infocomunicação está estreitamente conectado com dois paradigmas que subsidiam nossa discussão neste artigo: o paradigma tecnológico, por seus objetos de estudos estarem sempre conectados com as novas formatações das Tecnologias da Informação e da Comunicação, e o paradigma da Complexidade que nos permite uma interpretação holística, ampla e não linear, a qual abordaremos a seguir.
Os fenômenos da vida não são lineares. Não se é possível perceber as mais diversas formas fenomenológicas do espaço do mundo por meio de uma lógica simplista, reducionista e determinista. O social está imbricado de diversos tecidos multifacetados, amorfos e numa desordenada estrutura. No entanto, até mesmo o caos pode ser compreendido através de um pensamento organizado. Isso é perceptível, apenas, quando abrimos a mente para uma nova forma de compreensão da realidade.
O paradigma da Complexidade, de Edgar Morin, nos abre os olhos para uma amplitude sistêmica que nos rodeia constantemente. Ao perceber as múltiplas faces fenomênicas e modos de compreensão da razão, Morin proporciona ao campo científico uma viragem paradigmática, apresentando um olhar científico complexo, que traça diálogos com outras ciências, de forma múltipla e dialógica.[2] Assim, o autor entra em defesa de se construir um conhecimento não linear, que respeita o estado complexo dos fenômenos, mas que procura ser esclarecedor e sistematizado.
[...] a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações e retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. [...] Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... (Morin, 2005, pp. 13 e 14).
A necessidade de clarificar e ordenar o pensamento sempre esteve presente no campo da razão, no entanto, o racionalismo extremado nos levou a um campo científico mecanicista e mutilador, ou seja, a compreensão racional recorria ao recorte para compreensão do todo. Esse reducionismo apático científico foi necessário por algum tempo, mas, as novas formas sociais demandavam uma hermenêutica mais holística e dialética, pois não há como se compreender o múltiplo se prendendo a uma forma racional patologicamente instrumentalista e determinista. E como afirmamos anteriormente, esse modo de interpretação levou-nos ao que Morin (2005) chama de inteligência cega.
Nesse sentido, Morin indica um novo caminho epistemológico que se afasta do legado determinista (legado do racionalismo da física) e positivista (herdado pelas primeiras ciências sociais advindas com Auguste Comte) para a ciência. Ao afirmar a necessidade de tomarmos uma consciência radical, o autor aponta alguns erros cometidos durante a construção do conhecimento:
1. A causa profunda do erro não está no erro de fato (falta percepção) ou no erro lógico (incoerência), mas no modo de organização de nosso saber num sistema de ideias (teorias, ideologias);
2. Há uma nova ignorância ligada ao desenvolvimento da própria ciência;
3. Há uma nova cegueira ligada ao uso degradado da razão;
4. As ameaças mais graves em que incorre a humanidade estão ligadas ao progresso cego e incontrolado do conhecimento (armas termonucleares, manipulações de todo tipo, desregramento ecológico etc.) (Morin, 2005, p. 9).
A viragem paradigmática da complexidade é um recurso de resistência a essa forma reducionista de simplificação fenomênica que desembocou na inteligência cega. É uma ruptura com um paradigma positivista de construção de conhecimento. Representa ainda uma superação da compreensão dualística (racionalismo metodológico ainda próprio da física do século XIX) e hiperespecialização do campo científico que tende a mutilar as diversas interconexões da real complexidade fenomenológica do mundo.
O paradigma da complexidade importa no contexto dos estudos da Infocomunicação porque percebe os fenômenos da Informação e da Comunicação a partir de uma rede complexa de outros fenômenos subjacentes, entendendo-os a partir do contexto referente à Era Digital, que engloba tantos outros fenômenos da pós-modernidade. Em menos de 20 anos, assistimos uma radical modificação nas estruturas sociais, tudo agora está conectado e os modos de produção e reprodução tomaram formatos tão fluídos que é pouco provável a compreensão de determinados fenômenos por uma lógica determinista. Assim, Edgar Morin nos ajuda a compreender a realidade por uma “[...] fundamentação de uma ciência “do homem” (enquanto ser social e biológico), numa perspectivação teórica e epistemológica da complexidade social- numa visão, em grande medida antecipatória” (Santos, 2014, p. 31).
Alguns apontamentos descritos por Mariott (2007) reforçam a compreensão da necessidade do pensamento complexo para a Infocomunicação.
[…] religa saberes separados e dispersos; desfaz o fechamento dos conhecimentos em disciplinas estanques; procura reunir disciplinas que foram separadas (interdisciplinaridade, transdisciplinaridade); inclui um método para lidar com a complexidade; busca a circularidade entre análise (a disjunção) e a síntese (a religação); reconhece que existe multiplicidade na unidade e vice-versa; ultrapassa o reducionismo e o “holismo” e reconhece a circularidade entre as partes e o todo; reconhece que o cálculo, a quantificação e a mensuração são indispensáveis como meios de conhecimento; admite e procura lidar com a incerteza, a aleatoriedade, a imprevisibilidade e as contradições; concebe e aceita a dialógica, que complementa a lógica clássica [...] (Mariott, 2007, pp. 138 e 139).
Desse modo, o esforço de compreensão da Infocomunicação, respeitando os princípios da complexidade nos leva a outras imbricações em campos científicos em outros paradigmas que subsidiam nosso estudo sobre as novas formas de interação social nas Plataformas Digitais e seus fenômenos derivados, como é o caso do “surgimento” da “pós-verdade”.
Para compreensão mais abrangente desse fenômeno necessitaremos de uma perspectiva que nos faça compreender novas formatações do espaço digital e para isso recorremos ao paradigma tecnológico de Manuel Castells, o qual abordamos a seguir.
O carvão, a máquina a vapor e a eletricidade, símbolos típicos dos contextos da primeira, da segunda e da terceira Revolução Industrial respectivamente (séc. XVI, XVII e XVIII), já deixaram de habitar o imaginário social quando se fala em tecnologia. A mudança, iniciada a partir do séc. XX, quando a tecnologia passou a ser considerada ciência, hoje tomou uma forma simbólica eletrônica, representada por computadores, tablets, internet, robôs, chips, software e redes sociais. Essa ressignificação paradigmática tomou ainda outras formatações quando estudos aliaram o campo da tecnologia às ciências da Informação. A partir daí, a ciência da Informação passou a ser um campo de estudo necessário para a compreensão dos fluxos de informação que acontecem na sociedade.
[…] a ciência da informação, diferentemente das disciplinas que a precederam no campo da informação, dedica-se ao estudo das propriedades gerais da informação (LE COADIC, 1996). Assim, busca analisar os processos de construção, comunicação e uso da informação, bem como conceber produtos e sistemas que possibilitam a construção, a comunicação, o armazenamento e o uso da informação. Os processos de construção, comunicação e uso da informação, em particular, estão ligados uns aos outros, alimentando-se de forma recíproca. Como resultado, tem-se o ciclo da informação, que representa o modelo social da comunicação (Roza, 2018, p. 179).
Para Costa Santos e Vidotti (2009), entretanto, existem duas vertentes bases nos estudos das Ciências da Informação. Os autores explicam:
A recente história da Ciência da Informação (CI) apresenta duas tendências no estudo da natureza do tratamento e da gestão da informação e do conhecimento. A primeira, predominante na Organização da Informação (OI), focaliza os procedimentos de análise, de síntese, de condensação, de representação e de recuperação do conteúdo informacional e a reflexão sobre organização do conhecimento, seus desdobramentos epistemológicos e instrumentais. Estes, por hipótese, constituem as bases do tratamento e da representação da informação para a recuperação. A segunda, predominante nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), é marcada nas estruturas e modelos de sistemas computacionais atuantes nos processos de produção, de armazenamento, de preservação, de representação, de recuperação, de acesso, de (re)uso e de disseminação de conteúdos informacionais. Apesar de distintas, essas duas tendências possuem em comum pressupostos básicos fundamentais que direcionam os seus projetos de investigação por meio da construção de diretrizes e metodologias para a explicação e a explicitação da natureza e estrutura dos processos de representação e de recuperação de informações (Costa Santos e Vidotti, 2009, p. 1).
Mas, é pela perspectiva de Castells (1999) de onde tiramos o subsídio epistemológico e teórico para compreender essa Revolução da Tecnologia da Informação e enquadrar nosso debate neste artigo ensaístico, visto que Castells oferece um arcabouço teórico-metodológico, a partir das Ciências da Informação, para compreender fundamentos e modos de organização e desdobramentos dos fluxos informacionais na sociedade.
Diante das novas formas de interação social advindas a partir da evolução tecnológica, Castells (1999) compreende que a informação se tornou um conceito epicentral da sociedade, o que remodelou os modos de produção, apresentando até mesmo uma nova forma dos sistemas capitalistas. O autor chama isso de Informacionalismo, um fenômeno proporcionado graças a uma sociedade totalmente interconectada, ou seja, uma Sociedade em Rede, onde “[...] funções e processos dominantes na era da informação estão organizados, cada vez mais, em torno de redes” (Castells, 1999, p. 497).
As inovações nas interações sociais, sob a perspectiva de Castells, estariam estruturadas em uma “nova lógica espacial” (Castells, 2002, p. 468), os espaços de fluxos, os quais substituíram as antigas concepções enraizadas de espaço- que o autor chama de espaço de lugares. Para Castells, é no espaço de fluxo onde, hoje, trafegam informações, sons, imagens, símbolos, modos de produção, tecnologia, modos de interação social. É também nesse espaço de fluxo onde se configura e se organiza a economia global/ informacional, onde diversas frentes de modos de produção estão conectadas entre si, remodelando assim a forma tradicional capitalista na estrutura econômica mundial. Pela perspectiva do paradigma de Castells, a tecnologia se transfigura em formatações que veem a melhorar as novas relações das sociedades, tanto num aspecto econômico quanto organizacional social. Seu paradigma tecnológico possui cinco características principais:
1- “são tecnologias para agir sobre a informação” (Castells, 1999, p. 108): já que a informação se tornou matéria-prima o novo paradigma tecnológico é composto por tecnologias que agem sobre a informação;
2- “penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias” (Castells, 1999, p. 108): todos os processos da existência dos seres, individuais ou coletivos, são moldados pelo novo meio tecnológico, já que a informação é parte integral de qualquer atividade humana;
3- “lógica de redes” (Castells, 1999, p. 108): seria a complexidade na interação e suas respectivas ramificações, implementadas nos diversos tipos de processos interacionais da sociedade;
4- “flexibilidade” (Castells, 1999, pp. 108 e 109): os processos mediados pelas redes possuem uma grande capacidade de reorganização, “um aspecto decisivo em uma sociedade caracterizada por constante mudança e fluidez organizacional” (Castells, 1999, p. 109);
5- “convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado” (Castells, 1999, p. 109): seria a capacidade de vários tipos de tecnologias integradas nos sistemas de informação (a exemplo da interdependência entre a biologia e a microeletrônica e seus avanços nos estudos do DNA).
Ao avaliar as características do paradigma tecnológico de Castells, é perceptível a formatação complexa da sociedade em rede, uma sociedade que tem como ponto central a informação mediada pela tecnologia que nos conecta a todo momento.
Em resumo, o paradigma da tecnologia da informação não evolui para seu fechamento como um sistema, mas rumo a uma abertura como uma rede de acessos múltiplos. É forte e impositivo em sua materialidade, mas adaptável e aberto em seu desenvolvimento histórico. Abrangência, complexidade e disposição em forma de rede são seus principais atributos. (Castells, 1999, p. 113).
É perceptível também o ponto de vista otimista de Castells em relação às novas tecnologias da informação e suas implicações nas formas de comunicação. No entanto, é preciso compreender fenômenos atuais, emergentes nesses novos espaços de fluxo, que se contrapõem ao paradigma tecnológico de Castells, apresentando a tecnologia como uma vilã. No caso do contexto da “pós-verdade”, quando a tecnologia se torna promotora das chamadas “fake news”, ela torna-se um meio para a vasta proliferação de notícias falaciosas. Abordamos essa problemática e suas implicações, tanto com o paradigma da complexidade de Morin quanto com o paradigma tecnológico de Castells no tópico a seguir.
A palavra “pós-verdade” nasceu em meio a um caos informacional, ou melhor, desinformacional. A nomenclatura é uma problemática das novas formatações das interações sociais em rede e está ganhando legitimidade nesse mesmo caos. A palavra foi mencionada tantas vezes em 2016, num contexto político problemático que envolviam as campanhas do Brexit (Reino Unido) e do Donald Trump (Estados Unidos) - como demonstram Sismondo (2017); Santaella (2018); D’Ancona (2018); Vicente e Vicente (2018); Heawood (2018); Habowski, Conte, e Milbradt (2020); Siebert e Pereira (2020); Brahms (2020), entre tantos outros- que levaram o Dicionário Oxford a reservar um espaço para o verbete “post-truth” (em inglês), indo até além: a palavra foi eleita pela mesma instituição como palavra do ano, se consolidando assim como um neologismo cabível, pelo menos para o senso comum. Desde então, o conceito vem ganhando espaço em análises políticas e sociais, se legitimando em diversos debates.
De acordo com o dicionário Oxford, o termo “pós-verdade” refere-se a: “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (Dicionário Oxford como referido em Santaella, 2018, pp. 41 e 42). Apesar do verbete ter sido criado apenas em 2016, o “conceito” não era novo, pois já havia sido utilizado em 1992, na revista The Nation, por Steve Tesich, num contexto referente ao escândalo entre o Irão e a Guerra do Golfo. Alguns anos depois, um livro, The post-truth era - de autoria de Ralph Keys, foi publicado em 2014.
A palavra “pós-verdade” tem interpretações difusas:
Para o Dicionário, por sua vez, a “pós-verdade” deve ser entendida em dois sentidos diferentes: de um lado, o significado “depois que a verdade tenha se tornado conhecida”, de outro lado, o significado inaugurado pelo artigo de Tesich, a saber, o fato de que a verdade se tornou irrelevante (ibid). Assim, no seu sentido expandido, o prefixo “pós” não mais significa apenas “depois de um evento ou situação específica” como, por exemplo, na expressão “pós-guerra”, mas também implica “um tempo em que um conceito se tornou irrelevante ou sem importância, como foi o caso de pós-nacional, em 1945 (ibid) (Santaella, 2018, pp. 42 e 43).
Há um consenso entre alguns autores da contemporaneidade em legitimar o conceito da “pós-verdade” (D’Ancona, 2018; Brahms, 2020, Word of the year, 2016), atrelando ao significado uma relação mais intrínseca com a opinião pública do que com o conceito de verdade, propriamente dito, já que é uma “verdade” entendida a partir das crenças pessoais de cada um. Desde a quebra da ideia da verdade absoluta, a partir do Iluminismo, o conceito de verdade passou a ser deveras relativizado, e o subjetivismo, muito abarcado pelas teorias da “pós-modernidade”, por vezes recai numa falácia: confunde-se a subjetividade[3] com uma relativização de conceitos sem fundamentação científica, baseada apenas em crenças e conhecimento do senso comum. A modernidade líquida (Bauman,1997), deixou realmente tudo tão líquido que nos dificulta encontrar alicerces em meio à tanta instabilidade.
Do ponto de vista epistemológico, o conceito de pós-verdade apresenta problemáticas, já que a ciência não trata de verdades indestrutíveis, nem inconsistentes. Para Santaella (2018), o campo científico é racional e trabalha com verdades e provas, ou seja, verdades provisórias, até que se prove o contrário. “Justamente porque lida apenas com verdades provisórias é que não cabem à ciência os rótulos de pós-verdade, como também não cabem à filosofia” (Santaella, 2018, p. 77). Diante desse cenário é que abordamos a problemática da “pós-verdade” a partir de uma hermenêutica epistemológica dos paradigmas tecnológicos (Castells, 1999) e da complexidade (Morin, 2007), para podermos iniciar uma preliminar clarificação desse “fenômeno social”.
O paradigma tecnológico previsto por Castells nos brinda com uma perspectiva otimista em relação às novas formas de interações sociais intermediadas pelas tecnologias da informação e da comunicação. Pesquisas biológicas atreladas à tecnologia podem nos revelar os mistérios do genoma e das formas do nosso DNA, a economia estaria conectada globalmente simplificando processos de comunicação e encurtando distâncias de relacionamentos etc. Nesse contexto, a sociedade é suprida pelos benefícios das interações em rede no espaço de fluxo onde tudo é conectado.
No entanto, é preciso compreender que a relação entre tecnologia e sociedade é regida por um ethos social. Nesse sentido, os fenômenos decorridos das interações da sociedade em rede refletem essas mesmas sociedades que se conectam.
Castells afirma:
Assim, a dimensão social da revolução da tecnologia da informação parece destinada a cumprir a lei sobre a relação entre a tecnologia e a sociedade proposta algum tempo atrás por Melvin Kranzberg: A primeira lei de Kranzberg diz: “A tecnologia não é nem boa, nem ruim e também não é neutra.” É uma força que provavelmente está, mais do que nunca, sob o atual paradigma tecnológico que penetra no âmago da vida e da mente. Mas seu verdadeiro uso na esfera da ação social consciente e a complexa matriz de interação entre as forças tecnológicas liberadas por nossa espécie em si são questões mais de investigação que de destino (Castells, 1999, p. 113).
A “pós-verdade”, nessa perspectiva, contradiz o paradigma tecnológico de Castells, pois a tecnologia funciona mais como uma forma irrefreável para a propagação de mentiras e informações falaciosas, do que um sistema que auxilia a sociedade. Consideramos o “fenômeno” da “pós-verdade” como um produto da tecnologia por seu intrínseco contexto atrelado às interações na internet, já que foi percebida com maior intensidade nas redes sociais, sites e blogs. Isso também é consequência da vasta liberdade de produção de conteúdo em diversas plataformas digitais que aumentou publicações de cunho duvidosos, por parte de qualquer usuário na internet.
Outro importante fator para a propagação de notícias e informações falsas nas médias digitais é a vasta quantidade de informação que trafega nas redes. Hoje, a figura do gatekeeper (filtrador de informações nas rotinas de produção jornalísticas) já não existe mais. A imagem do jornalismo como fonte de informação oficial foi deixada de lado para as notícias que vemos nas redes sociais. Essa autonomia exacerbada, no entanto, nos leva a perceber casos graves de falta de literacia, falta de responsabilidade em compartilhamentos de algumas informações e falta de filtragem e checagem de dados ou fontes que divulgaram as informações por parte de usuários que propagam os conteúdos.
Em relação ao paradigma da complexidade, a “pós-verdade” aparece como uma armadilha. A afirmativa disso se acentua quando compreendemos a problemática sob a perspectiva da complexidade: o conceito de pós-verdade não pode ser aceito para o campo da ciência pois não abrange as instâncias dialógicas da complexidade, um equilíbrio necessário para que qualquer fenômeno esteja de acordo com o paradigma complexo de Morin. Abranger o aspecto dialógico da complexidade é entender as diversas angulações de um fenômeno, compreendendo seus contextos e processos dentro da esfera social, mas a partir de uma postura e didática cautelosa para não cair na falácia da relativização extremada.
O paradigma da complexidade age com a intenção de clarificar os fenômenos sociais, respeitando os aspectos de ordem e desordem fenomênica e, portanto, opõe-se tanto ao relativismo extremado quanto ao positivismo maniqueísta, pois, apesar de se apresentar sob forma epistemológica não linear, procura uma clarificação complexa, porém organizada, dialogando com vários outros campos científicos na busca da compreensão da realidade. Ou seja, o fenômeno se apresenta, e a partir dele e da forma como surgiu e se apresentou na vida real é que se procura entender suas implicações e seus contextos. Com a “pós-verdade” o movimento do conhecimento é contrário: a verdade já está estabelecida a partir de uma crença pessoal, e isso faz com que se perceba a realidade de forma limitada.
Santaella (2018), também explica por que o conceito gera um problema do ponto de vista epistemológico, visto que a pós-verdade não chega ao ponto fundamental da ciência, pois questões de cunho científico não trabalham com verdades irrefutáveis epistemologicamente, pois o trabalho da ciência é a busca incessante pela verdade. Logo, a Ciência trabalha com a superação, sucessiva, de verdades. Teorias que superam teorias, métodos que superam métodos e é isso que faz crescer o conhecimento. A autora explica:
É evidente que as ondas da pós-verdade não estão deixando ilesa nenhuma área de atividade humana, atingindo, inclusive, questões de cunho científico. [...] Entretanto, tais crenças e comodismos, que frutificam na ignorância, não atingem o fazer da ciência para o qual não cabe a pecha de pós-verdade. Por que não? Pelo simples fato de que a ciência não trabalha com verdades indiscutíveis, mas discutíveis (Latour apud Schultz, 2018). Quando uma nova ideia, teoria, método ou solução são propostos, é necessário apresentá-los frente a discordâncias, o que não se dá “no grito, na força ou por argumentos de autoridade” (Melo, 2018) (Santaella, 2018, p. 75).
Podemos considerar que boa parte da criação do conceito da “pós-verdade” é herança de uma tendência relativista que acirrou debates nas ciências, “à desconstrução da ideia de verdade na ciência e consequente perda de sua credibilidade até o ponto da “proliferação de teorias conspiratórias e lendas urbanas envolvendo total desrespeito pelas evidências” (Oliveira citado por Santaella, 2018, pp. 50 e 51).
Apesar disso, há autores que defendem a íntima relação entre a “pós-verdade” e a ciência, com discursos legitimados sobre a égide de que a verdade é apenas uma construção social. Steve Fuller é um deles. O filósofo pós-moderno publicou o artigo “Science has always been a bit post-truth” (A ciência sempre foi um pouco de pós-verdade), no The Guardian, onde afirma que a ciência é mais uma “máscara da legitimidade que é vestida por todos que perseguem o poder” (Fuller, 2016, citado por Santaella, 2018, pp. 52 e 53).
Em contraposição, autores rebateram as argumentações de Fuller e argumentaram que a ciência não é feita de “pós-verdade”, mas sim de verdades transitórias, testáveis e aplicáveis,
até sua subsequente contestação. No artigo “It's no game: Post-truth and the obligations of science studies” (Não é jogo: Pós-verdade e as obrigações dos estudos da ciência) Baker e Oreskes (citado por Santaella, 2018, pp. 53 e 54) defendem que: “Padrões normativos são indispensáveis em um mundo no qual os resultados das interações dentro das comunidades científicas importam imensamente às pessoas que estão fora dessas comunidades”.
Nesse sentido, quando alguns conceitos são relativizados e desconstruídos significativamente e semanticamente, como no caso da verdade. Segundo Santaella (2017), quem vence esse jogo é quase sempre o “status quo do poder” (p. 53). Por isso mesmo, a democracia aplicada à política na contemporaneidade e a ciência importam (Santaella, 2018, pp. 53 e 54).
Compreendemos assim que a “pós-verdade” apresenta-se como um “fenômeno” destoante dos princípios da complexidade, pois, pela ótica da pós-verdade, a realidade é enxergada de uma forma determinista (existe a única verdade baseada na crença pessoal) ou demasiada relativista (a verdade depende das crenças pessoais também, mas, se não for concordante com o que se acredita é relativizada, não importando a comprovação ou indícios de dados científicos que contestem a crença). Tudo isso sem se ater aos fatos comprovados cientificamente, sem entender contextos, tempo, espaço e sociedade, fugindo, portanto, o perfil dialógico da complexidade.
Além disso, por não se preocupar com a comprovação dos fatos a partir da prova científica, o conceito de “pós-verdade” pode ser compreendido como um fenômeno social, mas não como um conceito do campo científico, pois está preso ao senso comum, às crenças pessoais: num relativismo lato sensu onde o campo da ciência não se permite adentrar, ou a um retrógrado determinismo positivista, onde consolida uma verdade universal e única, porém sem comprovação e subsídios científicos. No entanto, apesar de não possuir fundamentação epistemológica para o conceito da “pós-verdade”, é por uma hermenêutica, sustentada pelo campo científico, que conseguimos construir um debate e uma crítica a respeito do conceito e compreender sua incursão nos campos da Informação e da Comunicação como um fenômeno consequente e subjacente aos fluxos de informação da Era Digital.
Num contexto conflituoso das novas médias digitais, onde se propaga a informação e a desinformação, o campo da Infocomunicação surge como um auxílio para uma compreensão interdisciplinar e transdisciplinar dos fenômenos sociais da atualidade que envolvem essas problemáticas da sociedade em rede, conectadas pelas plataformas digitais.
A amplitude da abrangência desse campo de estudo nos permite trilhar caminhos epistemológicos que nos ajudam a construir uma hermenêutica fenomenológica substancial e complexa. Aliás, a complexidade de Edgar Morin, nessa área de conhecimento é a todo momento posta em prática diante do diálogo intrínseco entre os diversos campos científicos com os quais trabalhamos na Infocomunicação.
Nessa perspectiva, conseguimos clarificar novos conceitos que estão a surgir no novo contexto tecnológico social e assim direcionar os campos de estudos da Informação e da Comunicação para ambientes mais seguros, que não tendam a falácias epistemológicas, como a “pós-verdade”.
Nesse breve artigo ensaístico, conseguimos compreender a importância dos paradigmas da complexidade de Morin e do paradigma tecnológico proposto por Castells, num esforço para uma interpretação atual, abrangente e não linear dos fenômenos sociais que estão a surgir no contexto das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Percebemos ainda que quando existem conflitos epistemológicos gerados a partir do esforço da compreensão de um fenômeno a partir de um determinado paradigma surgem problemáticas que geram fissuras nas estruturas auto-organizadas nas sociedades, principalmente nas estruturas da sociedade em redes.
A “pós-verdade” é um exemplo disso. Surge num contexto conflituoso de desorganização social, gerando conflitos entre os princípios do paradigma da complexidade de Morin e atuando em direção contrária ao paradigma tecnológico de Castells, tratando a tecnologia como vilã enquanto meio de difusão de desinformação.
No entanto, percebemos que esse fenômeno de mentiras e informações falaciosas não é nada novo e apenas surge como reflexo da sociedade, mas num ambiente tecnológico. Apesar disso, a estrutura auto-organizada da sociedade procura se reestabelecer diante da problemática e aplicar antídotos contra seus próprios malefícios, como é o caso das agências de checagem e alguns aplicativos e novas ferramentas de combate a informações falaciosas.
Outra questão sobre a “pós-verdade” é a problemática da sua legitimação. Quanto ao senso comum, a palavra já está se consolidando em publicações na internet e até mesmo no mercado editorial. E, tendo em vista a grande proliferação de publicações a esse respeito, continuará a representar as práticas sociais relativas a esse contexto de notícias falsas, que ocorrem dentro da esfera pública digital. Entretanto, a crítica vale para o uso do termo técnico “pós-verdade” dentro da academia e da ciência, tendo-o como um modelo explicativo.
É por um esforço epistemológico que conseguimos traçar essa crítica quanto ao conceito da “pós-verdade”, que está tanto em voga na atualidade das interações nas plataformas digitais. Por fim, é papel da ciência construir, desconstruir, legitimar e deslegitimar verdades, aplicando sempre métodos de análise verificáveis, para assim consolidar conceitos e suas verdades, mesmo que transitórias, até que se prove o contrário.
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[1] “Infelizmente, como vos confessei logo de início, não tenho uma definição precisa, exaustiva, completa da família de palavras a que a interdisciplinaridade pertence. Tenho unicamente uma proposta provisória de definição que passo a apresentar rapidamente. A minha proposta é muito simples. Passa por reconhecer que, por detrás destas quatro palavras, multi, pluri, inter e transdisciplinaridade, está uma mesma raiz – a palavra disciplina. Ela está sempre presente em cada uma delas. O que nos permite concluir que todas elas tratam de qualquer coisa que tem a ver com as disciplinas. Disciplinas que se pretendem juntar: multi, pluri, a ideia é a mesma: juntar muitas, pô-las ao lado uma das outras. Ou então articular, pô-las inter, em inter-relação, estabelecer entre elas uma ação recíproca. O sufixo trans supõe um ir além, uma ultrapassagem daquilo que é próprio da disciplina” (Pombo, 2005, p. 5).
[2] “(...) alguns elementos adicionais devem ser ditos para que o leitor tenha noção da radicalidade dessa incorporação moriniana da dialética à dialógica. Esta, em Morin, não significou ruptura, mas superação e deslocamento. Porém, para toda uma tradição que coloca a condição da verdade no sujeito (e no discurso) e não na realidade objetiva-objetivada, a dialógica acaba por negar (não no sentido dialético, mas sim positivista) a dialética, uma vez que estabelece o movimento do conhecimento e da história fora das condições historicamente produzidas e situa estritamente no plano subjetivo ou intersubjetivo, o que permite não a relativização da verdade ao contexto histórico, como em Marx, mas sua redução ao relativismo subjetivista.” (Loureiro e Viégas, 2012, p. 21).
[3] Importante afirmar que a subjetividade não é um problema epistemológico, se averiguada e analisada de maneira cuidadosa. Entretanto, sempre existiu um embate entre paradigmas Positivistas- que tem como princípio básico a pretensa neutralidade científica- e outros paradigmas tendentes ao relativismo, que considera a relatividade de contextos e subjetividades dos fatos sociais. É preciso, no entanto, explicar que aceitar a subjetividade é entender que tudo, incluindo a produção de conhecimento (seja científico ou não), está conectado com uma subjetividade inerente ao contexto social, visão também entendida, do ponto de vista historiográfico, pelo Materialismo Histórico, que explica que “a História faz-se de um lugar e está pautada por marcas ideológicas” uma perspectiva que também contribuiu para a produção do conhecimento científico, principalmente da Humanidades, no século XIX” (Barros, 2011, p. 7). Entretanto, compreender as subjetividades não é relativizar, principalmente quando se trata de fatos sociais apresentados a partir de dados científicos. O movimento “terraplanista”, que acredita que o Globo Terrestre é plano, é um forte exemplo da sobreposição da crença pessoal acima de provas científicas, relativizando dados comprovados a partir de falácias e argumentações falsas provenientes da experiência obtida na vida cotidiana e a pautando o conhecimento no senso comum (Marineli, 2020).