Austral Comunicación

ISSN-L 2313-9129

ISSN-E 2313-9137

Volumen 14, número 2, 2025

e01418

Número monográfico: Ciência, crenças e discursos nas esferas sociais e sociedades

Reynaldo Rivera

https://orcid.org/0000-0001-9169-0251

Facultad de Comunicación, Universidad Austral. Buenos Aires, Argentina.

rrivera@austral.edu.ar

Alandeom W. Oliveira

https://orcid.org/0000-0003-2418-0299

State University of New York at Albany. Albany, United States.

aoliveira@albany.edu

Publicado: 10 de abril de 2025.

DOI: https://doi.org/10.26422/aucom.2025.1402.riv

Introdução

Em seu influente artigo de 1999, “A Teoria da Comunicação como Campo”, Craig conceitualizou a comunicação como um campo metateórico que desempenha um papel constitutivo na formação da realidade social. Em vez de servir simplesmente como um meio para transmitir mensagens ou influenciar comportamentos, a comunicação funciona como um processo fundamental através do qual o conhecimento é construído, as relações são formadas e a própria sociedade é configurada. Este número especial mostra como a teoria da comunicação operaria como um campo metateórico para o estudo das relações entre ciência e crença na América Latina.

Embora tenha havido uma considerável pesquisa sobre “religião” e “ciência” como fenômenos sociais e culturais separados em diversas disciplinas, a pesquisa social-científica específica sobre sua interseção é uma área emergente (Jones et al., 2019).

Existe uma percepção errônea comum entre acadêmicos e o público em geral de que a relação entre ciência e crença (religião) está bem compreendida e resolvida. Embora a maioria dos cientistas não perceba um conflito entre eles, a “narrativa do conflito” prevalece nos discursos das sociedades ocidentais (Fitz Herbert et al., 2023). Em muitas partes do mundo, os criadores de mídia e as campanhas, a adoção da doutrina de “Separação da Igreja e do Estado”, os mandatos constitucionais de secularização e as recentes sentenças da Suprema Corte criaram a impressão de uma “guerra” em curso entre a ciência e a religião (Aechtner, 2020; Fitz Herbert et al., 2023). Em outras, existe a percepção de que o conflito terminou e que foi vencido pela ciência, levando ao surgimento de uma vida pública que está em grande parte secularizada (laica). Espaços públicos como salas de aula, meios de comunicação, hospitais, tribunais e comícios políticos foram “higienizados” (Segall & Burke, 2013) ao eliminar todas as compreensões e influências religiosas, e tornaram-se assim livres de doutrinação. Subjacente a tais pontos de vista está a suposição de que a ciência e as crenças são entidades monolíticas que podem ser separadas fácil e sem problemas.

No entanto, pesquisas recentes sugerem que tais pontos de vista são, na melhor das hipóteses, simplistas, e na pior, errôneos (Ecklund, 2010; Ecklund et al., 2019; Fitz Herbert et al., 2023; Harrison, 2010, 2015; Jones et al., 2019). Por exemplo, embora a religião não seja ensinada explicitamente, continuam a existir “rastros religiosos” ou “nuances” nos sistemas educativos públicos secularizados de países como os Estados Unidos (Segall & Burke, 2013), bem como em profissões e outras esferas públicas que são relevantes na construção do mundo moderno (Bauman, 2014; Casanova, 2011; Zsolnai & Flanagan, 2019). A fé, a religião e as crenças continuam presentes nas artes cênicas e na cultura popular consumida pelos grupos de jovens (Harris, 2016). Apesar da ausência de ensino religioso e leitura bíblica, as suposições, metáforas e terminologia religiosas (por exemplo, missão, ano sabático, cardeal) continuam a ser parte integrante do pensamento e da prática educativa, e às vezes ressurgem no discurso público. Além disso, a pesquisa teórica/filosófica postula convincentemente a possibilidade de que a ciência e a religião sejam uma relação em um espectro de diferentes tipos de diálogo e colaboração (Catto et al., 2019; Elsdon-Baker et al., 2017), em vez de conflito ou independência (Barbour, 1966; Stenmark, 2004).

À medida que a complexidade das interações entre ciência e religião se tornou mais evidente e o campo se consolidou e se internacionalizou cada vez mais, existe uma crescente necessidade de pesquisas que vão além da teorização abstrata e filosófica e examinam analiticamente a ciência e a crença como práticas socialmente situadas (De Cruz, 2022; Elsdon-Baker & Mason-Wilkes, 2019). Mais especificamente, existe uma necessidade de estudos de pesquisa (especialmente em regiões em desenvolvimento como a América Latina e o Sul Global) que sejam baseados em evidências, fundamentados na coleta, análise e interpretação sistemáticas de dados (definidos de forma ampla e não limitados a abordagens positivistas tradicionais). Isso ecoa o argumento de Jones, Kaden e Catto (2019) de que “a exploração de questões relacionadas à ciência e à crença é extremamente limitada... além dos Estados Unidos, seria difícil descrevê-la como um ‘campo de estudo’, tão limitada e desconectada tem sido a pesquisa até o momento” (p. xix). Abordar tal necessidade é o objetivo principal deste número especial, que é enquadrado pela seguinte pergunta geral: Como a relação entre ciência e crença é percebida, comunicada, difundida, negociada, promulgada, implementada, contestada, desafiada, experimentada e vivida em diversas partes da sociedade e esferas públicas?

Transpondo fronteiras: o papel positivo das relações complexas entre ciência e religião

A comunicação desempenhou um papel fundamental na relação entre ciência e crença. Os processos de descoberta e difusão científica são fundamentalmente criativos e relacionais, muitas vezes marcados por desenvolvimentos imprevistos e resultados surpreendentes que surgem da interação de ideias, elementos, situações e agentes aparentemente opostos. A criatividade emerge através da interação dinâmica da imaginação individual e coletiva, das interações sociais e da imprevisibilidade inerente à exploração científica. Essas interações ocorrem na fase de difusão, quando a informação científica é divulgada dentro da sociedade por meio de ações comunicacionais. Nesses processos, a convergência de diferentes domínios, como a ciência e as crenças, pode criar condições que fomentam a serendipidade, permitindo descobertas e inovações inesperadas pela combinação de diversas perspectivas.

A serendipidade desempenha um papel crucial na pesquisa interdisciplinar, onde a quebra de barreiras entre horizontes de conhecimento como a ciência e as crenças facilita o intercâmbio de ideias e o surgimento de novas perspectivas. Essa abertura a conexões inesperadas pode levar a descobertas inovadoras que transcendem as limitações de qualquer campo individual (Darbellay et al., 2014). Na sociedade contemporânea, onde os avanços científicos coexistem com tradições religiosas e espirituais profundamente enraizadas, torna-se crucial examinar como esses domínios se comunicam e influenciam mutuamente. Compreender melhor essa relação é essencial para fomentar a harmonia social, melhorar as práticas educativas e promover políticas públicas que respeitem diversas perspectivas. Inspirado e enraizado na atividade acadêmica apoiada pela Rede Internacional de Pesquisa para o Estudo da Ciência e Crença na Sociedade (INSBS), este número especial da Austral Comunicação busca desafiar a narrativa de conflito prevalecente, iluminando a complexa interação entre ciência e crença em diversos ambientes, desde salas de aula e museus até plataformas digitais e debates de políticas públicas.

Os artigos deste número argumentam coletivamente que a relação entre ciência e crença não é monolítica, mas existe em um espectro, que vai desde o conflito e a separação até o diálogo e a integração. Ao examinar como a ciência e a crença se comunicam, negociam e promulgam em diferentes contextos sociais, os colaboradores deste número lançam luz sobre as formas como esses dois domínios coexistem, influenciam-se mutuamente e moldam a compreensão pública de questões-chave como educação, justiça social, saúde pública e desenvolvimento sustentável. Através de estudos empíricos, explorações teóricas e análises históricas, esta coleção de artigos desafia os leitores a reconsiderar as suposições arraigadas e a apreciar a natureza dinâmica e dependente do contexto das interações ciência-crença.

Conflito, coexistência e integração no âmbito educativo

Um tema principal que emerge deste número é a interação dinâmica entre a ciência e a crença religiosa dentro dos ambientes educacionais.

María Sol Barbera investiga a representação da ciência e da religião nos livros didáticos do ensino médio argentino, revelando um espectro de abordagens que vão do conflito à independência e até à complexidade. Ela observa que “não existe uma postura majoritária ou unificada”, reconhecendo o potencial de coexistência e diálogo.

Fernanda Barros e Yvonélio Nery Ferreira exploram a influência histórica do Liceu Francês no Colégio Pedro II do Brasil, argumentando que “a relação entre o estado e a igreja no Brasil proporcionou uma caracterização particular ao grupo de pessoal e matérias de ensino”, refletindo as complexas formas como as práticas educacionais foram moldadas por contextos culturais e políticos.

Aya Isaac aborda a integração dos valores islâmicos nos currículos de ciências, propondo um modelo educacional holístico que alinha a compreensão científica com o crescimento espiritual e moral. Ao aproveitar os princípios educacionais islâmicos e alinhá-los com os Padrões de Ciências da Próxima Geração (NGSS), Isaac desafia a noção de que a educação baseada na fé necessariamente prejudica o rigor científico.

Alandeom W. Oliveira Javier Wever, Carmen Marroquín, e Antonio Miron examinam como os professores do ensino fundamental nos Estados Unidos navegam pelas práticas de instrução relacionadas à morte dentro de contextos educacionais secularizados. Argumenta-se que “criar espaços educacionais holísticos para a exposição dos alunos a formas epistemicamente diversas de conhecer a morte além da ciência” poderia apoiar o florescimento dos jovens e reduzir a ansiedade diante da morte.

Heslley Machado Silva investiga como os professores de biologia na Argentina, Brasil e Uruguai navegam no ensino da teoria evolutiva e na possível inclusão do design inteligente. Suas descobertas sugerem que “uma abordagem mais integrada da ciência e da crença na educação poderia ajudar os alunos a navegar por questões existenciais complexas”.

Em conjunto, estes estudos destacam o impacto comunicacional da educação e revelam como as perspectivas científicas e religiosas coexistem e até se complementam dentro das práticas educacionais. Ao destacar diversos contextos culturais e abordagens de ensino, estes artigos defendem quadros educacionais mais matizados que abracem o diálogo entre a ciência e a crença, em vez de perpetuar separações rígidas.

Comunicação e dinâmicas sociais: o papel da ciência e da religião na esfera pública

Outro tema recorrente é como os sistemas de crenças e a autoridade científica se cruzam dentro das dinâmicas sociais e políticas públicas.

M. Mercedes Galan-Ladero examina o papel dos líderes religiosos nas estratégias de marketing social destinadas a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Este estudo destaca que os valores religiosos e as abordagens científicas podem ser “não apenas compatíveis, mas até complementares” ao abordar problemas sociais.

Patricia Schroeder Rius, Lucía Mancuello, Inés Besada Paullier, e Gimena Suárez analisam a tomada de decisões sobre vacinação durante a pandemia de COVID-19 no Uruguai. Suas descobertas desafiam a suposição prevalecente de que a oposição religiosa é o principal impulsionador da resistência às vacinas.

Carlos Nazario Mora Duroconcentra-se nas perspectivas da população não religiosa do México (“nones”) em relação à ciência e à religião. Este estudo desafia a visão simplista da secularização como uma progressão linear, mostrando que as identidades pluralistas podem acomodar tanto elementos seculares quanto religiosos dentro de uma única cosmovisão.

Estes estudos iluminam como a comunicação e as dinâmicas sociais podem ser moldadas tanto por perspectivas religiosas quanto científicas, oferecendo uma compreensão mais holística de como os sistemas de crenças interagem com o comportamento na esfera pública.

Perspectivas culturais e relacionais: compreendendo os sistemas de crenças

As dimensões culturais e relacionais da interação entre ciência e crença também são exploradas neste número.

Enrique Sánchez-Costa oferece uma análise de como as redes de Jacques Maritain fomentaram “um espaço para o diálogo e a esperança em meio à crise da modernidade”, mostrando como os sistemas de crenças podem se adaptar mesmo em períodos marcados pela secularização e agitação social.

Por fim, Isaac Nahón Serfaty examina como as plataformas de comunicação digital remodelaram a compreensão do sagrado e do profano. Este estudo sublinha como os meios digitais podem facilitar tanto a coexistência quanto o choque de cosmovisões diferentes na sociedade contemporânea.

Em conjunto, estas perspectivas revelam que a relação entre ciência e crença não é apenas moldada por debates intelectuais, mas também está profundamente enraizada em transformações sociais e culturais mais amplas.

Conclusão

Em conjunto, os dez artigos deste número especial da Austral Comunicação desafiam os leitores a reconhecer reflexivamente que a interação entre ciência e religião é moldada por uma variedade de fatores comunicativos, incluindo normas culturais, práticas educativas, redes intelectuais e dinâmicas sociais.

Uma das ideias-chave que emergem destas contribuições é a constatação de que a ciência e a crença não são entidades estáticas, mas evoluem constantemente em resposta a sistemas socioculturais em mudança e interações complexas. Seja através da integração de valores religiosos nos currículos educativos, da participação estratégica de líderes religiosos no marketing social para o desenvolvimento sustentável ou da representação matizada da ciência e da religião nos livros didáticos escolares, estes artigos demonstram que a interação da ciência e da crença é muitas vezes mais complexa e fluida do que sugerem as narrativas convencionais.

Além disso, este número destaca que abordar os desafios contemporâneos, como as crises de saúde pública, os movimentos de justiça social ou as reformas educativas, requer uma compreensão mais matizada de como a ciência e a crença se cruzam e moldam as atitudes e comportamentos públicos.

Em última análise, este número especial faz um apelo para reimaginar a relação entre ciência e crença: uma que abrace a diversidade, fomente o diálogo e reconheça o potencial de colaboração em vez de conflito. À medida que a sociedade continua a lidar com questões complexas que tocam tanto dimensões científicas quanto morais, é crucial adotar uma perspectiva mais sistêmica e sensível ao contexto. Os artigos deste número oferecem ideias valiosas que podem guiar futuras pesquisas, informar o discurso público e inspirar educadores, legisladores e líderes comunitários a abordar a relação ciência-crença com abertura, curiosidade e um compromisso com a compreensão.

Ao apresentar um espectro de perspectivas e estudos de caso, este número especial não só contribui para o discurso acadêmico, mas também convida os leitores a refletir criticamente sobre as suas próprias suposições e a apreciar as intrincadas formas como a ciência e a crença moldam a experiência humana. É através de tal compromisso reflexivo e de mente aberta que podemos superar as divisões arraigadas e avançar para uma consideração mais inclusiva e reflexiva da busca humana por conhecimento e significado.

Reconhecimento

Os editores desta edição monográfica agradecem o apoio de uma doação do Templeton Religion Trust, concedida por meio da International Research Network for the Study of Science and belief in Society (INSBS). As opiniões expressas nos artigos da Edição Especial são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição do Templeton Religion Trust ou do INSBS.

Obra sob licença internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0.

Referencias

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